Vale uma reflexão estratégica sobre o sucesso impressionante do filme Coringa (Warner Bros). O filme conta com uma direção impecável, um roteiro profundo e consistente, e uma atuação ímpar do norte-americano Joaquin Phoenix (que se torna o Coringa). A produção não tem efeitos especiais extraordinários e muito menos super-heróis salvando o mundo – uma estética que tem povoado de maneira exagerada as telas dos cinemas, com as produções múltiplas e intermináveis de diversos estúdios, como Marvel, Disney+ e DC.
O filme retrata com profundidade a anatomia dramática da gênese de um vilão, despejando o esgoto a céu aberto da sua vida forjada na falta de amor, na loucura familiar, na rejeição, no desprezo social e na violência, na obrigatoriedade de expressar alegria e normalidade insuportáveis para a realidade de um homem doente e desesperado, sofrendo de uma solidão e uma carência emocional dilacerantes. De uma estética ferrugem quase penumbra, o roteiro apresenta uma complexidade psicossocial extremamente provocativa, que deixa para poucos a capacidade de tecer análises corretas e definitivas sobre o protagonista.
Para nós, estrategistas, a pergunta (e a tentativa de resposta) é mais simples: por que um filme com esses predicados está no caminho de se tornar o maior sucesso global do cinema recente, que superou US$ 1 bilhão em vendas de ingressos?
Porque o filme é estrategicamente melhor. De alguma forma o roteiro demonstra empatia com o mundo contemporâneo dos extremos; do obscurantismo pela falta de diálogo; da depressão crescente respondendo por 30% do faturamento das farmácias; do constrangimento das pessoas infelizes ou lutando com dificuldade para conquistar momentos de rara felicidade; diante do espetáculo constrangedor de sucesso e beleza, que parece ser o normal na vida dos outros nas redes sociais. O novo capital social, das curtidas e visualizações de preferência viralizadas, faz as pessoas se sentirem obrigadas a sorrir e mostrar felicidade o tempo todo, forçando o uso de máscaras feito palhaços nas postagens, mesmo aqueles que na verdade estão sofrendo por dentro e sentindo-se invisíveis até mesmo para quem está ao seu lado.
Eu mesmo vivenciei – e ouvi de muita gente a mesma impressão – inúmeras pessoas saindo do cinema profundamente caladas ou compartilhando um estado de choque pela identificação inconsciente com o drama do protagonista; penalizadas pela história triste, mais do que revoltante pelos crimes cometidos em cena; ou simplesmente preocupadas com o desconserto do mundo. O filme toca as pessoas, ainda que não saibam exatamente como e nem por quê. Surfando na onda do sucesso do filme, poucas semanas após o lançamento o Instagram disponibilizou efeitos para que você vestisse a máscara do Coringa e postasse a imagem na sua rede – uma estratégia consciente (ou não) desse explorar esse paradoxo que o filme retrata.
Essa ressonância com o drama do personagem está na essência da estratégia de design de um produto ou serviço: compreender as necessidades, os desejos e dramas da sociedade e traduzi-las em soluções, por meio de produtos ou serviços. O cinema tem esta obrigação estratégica, além de ser uma manifestação artística de interpretação das ansiedades e inquietudes do mundo. O sucesso do filme Coringa é, para nós, uma aula de estratégia.
RESSALVA IMPORTANTE: diante da polarização dos debates inflamados no mundo hoje, principalmente na Internet, cabe deixar claro que não pretendo, neste texto, aprovar a violência do filme, aprovar a possível conexão entre doença mental e violência, ou qualquer outra interpretação diferente do que simplesmente reconhecer a estratégia acertada da produção, que soube empatizar com parte importante da sociedade contemporânea.
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